Um raro modo de se fazer cidades

Guilherme Wisnik

A Flip é, ainda que não se perceba conscientemente, uma notável ação de urbanismo. Mas não um urbanismo tal qual nos acostumamos a pensar, como uma ciência que regula o crescimento urbano por meio do zoneamento funcional ou do estabelecimento de gabaritos, tipologias e leis. Ao contrário, opera uma progressiva transformação do tecido urbano do sítio histórico de Paraty através de ações efêmeras que se mostram significativas pelo seu uso. Refiro-me à ocupação intensiva, pelas pessoas, na forma de dois auditórios para conversas e debates e uma grande livraria, em partes da praça que normalmente são usadas como estacionamentos para carros. Da mesma forma, a expansão das atividades para a margem esquerda do rio Perequê-Açu, num grande passeio público onde se localizam livrarias, cafés e conversas promovidas pelas editoras independentes, várias sediadas em barcos, amplia muito o espaço de frequentação pública e desfrute do ambiente da cidade em torno das águas. É como se a Praça da Matriz se expandisse, trazendo com isso uma valorização nova das bordas-d’água de Paraty.

Com o feito de criar permanências através de ações temporárias, a Flip constrói, a cada edição, um urbanismo que não se realiza de cima para baixo, por meio dos desenhos de algum arquiteto demiurgo ou das leis de algum planejador distante do contato cotidiano coma cidade. O urbanismo da Flip é um urbanismo de teste, o que é muito raro. Isto é: vai sendo testado pouco a pouco, ao longo dos anos, o que permite aferir suas qualidades e problemas, e pactuar com a sociedade a sua implementação ou não. É daí que nascem as ações mais perenes desse projeto, tais como a requalificação da Praça da Matriz (projeto de Mauro Munhoz, Associação Casa Azul, 2008-09) e do antigo cinema ali localizado, rebatizado de Cinema da Praça (projeto de Luis Tavares e Marinho Velloso, Arquipélago Arquitetos, 2018).

Ampliando o raio da discussão, devemos lembrar que a ciência do urbanismo entrou em crise, no mundo, desde os anos 1970. Refiro-me ao urbanismo funcionalista moderno, uma doutrina de fundo positivista, que pensou poder regular toda a complexidade social por meio de leis e do controle da forma urbana. Um urbanismo acusado muitas vezes de autoritário, ou de utópico, que tem sua grande referência na Carta de Atenas de Le Corbusier, e que norteou a concepção de Brasília. No campo da discussão arquitetônica, em meio ao ambiente de ascensão do chamado pós-modernismo, essa revisão resultou, em linhas gerais, na aceitação e no elogio da cidade existente, fosse ela a cidade do vernáculo de consumo capitalista, como Las Vegas, ou a cidade histórica europeia. Populista ou historicista, a nova atitude adotava uma modéstia que parecia querer abandonar a posição ambiciosa e abarcadora do antigo planejador. 

Pretendendo redescobrir a cidade clássica em um momento impróprio, em que o planeta se urbanizava avassaladoramente, os arquitetos se retiraram da discussão sobre os problemas reais da cidade no capitalismo avançado, como observa Rem Koolhaas. Desse modo, enquanto desenhavam vielas e belas pracinhas em estilo clássico, as cidades explodiam em favelas e subúrbios cada vez mais distantes, induzidos pela mobilidade do automóvel individual e pela crescente especulação imobiliária. Esse foi o “ponto de não retorno”, afirma Koolhaas, o “momento fatal de desconexão”, que transformou os urbanistas em “especialistas em dores fantasmas: doutores discutindo as complicações médicas de um membro amputado”. Em resumo, seguindo as provocações do autor: a ciência urbana desaparece justamente no momento histórico em que ela parecia ser mais necessária.

Mas, afinal, fica a pergunta: qual urbanismo desejaríamos ver nascer, ou renascer, hoje? No contexto brasileiro, parece que o momento de formulação das críticas ao planejamento funcionalista moderno, associado necessariamente a um projeto de país, foi sucedido por um novo momento em que atuar em grande escala na cidade significava necessariamente realizar “parcerias” entre os setores público e privado, através das quais — sob o mantra das privatizações e do encolhimento do Estado — o poder público realizou obras viárias e grandes remoções de populações para dar espaço ao livre fluxo de automóveis e de capital transnacional. Dessa política resultaram várias “operações urbanas” em São Paulo, como a Nova Faria Lima (1995) e a Água Espraiada (2001).

Enquanto esse novo ciclo no Brasil se reatualizava mais recentemente em operações violentas de remoção de populações para grandes eventos como os Jogos Olímpicos de 2016 — caso notável da Vila Autódromo, no Rio de Janeiro, por exemplo —, começava a ficar clara, ao mesmo tempo, a dificuldade de se focar, do ponto de vista urbanístico, em problemas emergenciais das populações que vivem hoje nas grandes cidades brasileiras. Isso se deve em parte ao progressivo controle da política no Brasil pelo Ministério Público. Ainda que expresse um avanço salutar das nossas instituições no combate à corrupção, resultou também em um enrijecimento das ações de maior escala, que envolvem grandes orçamentos, e que são a base de qualquer proposição concreta para as grandes cidades, e, portanto, a base da própria definição de urbanismo. Nesse campo, lugares como São Paulo se viram bastante prejudicados, conseguindo apenas realizar “obras” de muito baixo orçamento — ainda que de grande impacto urbano —, tais como uma significativa rede de ciclofaixas e a abertura da avenida Paulista e de outras vias para pedestres aos domingos. 

Retorno, desse modo, à pergunta anterior: em tais condições, qual ou quais urbanismos desejaríamos ver nascer, ou renascer, nesse momento? Vão aqui algumas hipóteses, ou sugestões: 1) aqueles atentos às escalas locais, referentes à vida cotidiana das pessoas, mas que não percam de vista uma dimensão mais abrangente e sistêmica das cidades, como sua infraestrutura, rede de espaços públicos, e sua relação com a paisagem natural; 2) um urbanismo dos “comuns”, no qual a dicotomia entre Estado e iniciativa privada se dilua um pouco, em prol de uma participação mais ativa da sociedade civil tanto na formulação das propostas quanto na gestão dos espaços e das organizações. 

Sem que seja uma ilustração pura dessas ideias, o urbanismo da Flip traz consigo muitas dessas novas concepções, e também muitas de suas virtudes. Ainda que não esteja isento de críticas, como é claro, um projeto urbano de longo tempo, e com as características já antes mencionadas, é uma resposta inteligente  aos impasses que procurei brevemente mencionar. Uma resposta que constrói “urbanidade” por meio da educação e da cultura, valorizando os espaços públicos e a paisagem natural da cidade. Valores que precisamos defender energicamente.

 

Guilherme Wisnik é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, ensaísta, crítico, compositor e curador. Publicou Dentro do nevoeiro (Ubu, 2018) e Espaço em obra: cidade, arte, arquitetura (Edições Sesc SP, 2018, com Julio Mariutti), entre outros.