As passadas
Caminhar é habitar

Francesco Perrotta-Bosch

Fui pássaro e onça
Criança e mulher.
Numa tarde de sombras
Fui teu passo.

Hilda Hilst, Da morte. Odes mínimas (1980)

Preste atenção por onde pisa. A caminhada pelas ruas paratienses pode não ser plácida. É necessária certa destreza ao andar pelo calçamento pé de moleque: para seguir em frente, por vezes, é preciso dar um passo para o lado. A segurança da passada não está na marcha reta do ser aparentemente convicto, mas na procura da superfície rochosa mais plana e áspera para firmar nossos pés. Contudo, não nos iludamos, não temos pleno controle nessa andança: há muito do acaso que, de tempos em tempos, nos faz escorregar levemente (ou bruscamente) ou nos dá uma inesperada certeza para prosseguir. Mas trôpegos continuamos a caminhar pelas informes pedras das ruas de Paraty.

As vias do Centro Histórico compõem uma malha urbana em formato de concha entre os rios Perequê-Açu e Patitiba (este já não mais existe). Enquanto as vielas paralelas à orla marítima são arqueadas, admiramos nas ruas perpendiculares à baía a condição geográfica tão sabiamente descrita por Lucio Costa: “Paraty é a cidade onde os caminhos do mar e os caminhos da terra se encontram, ou melhor, se entrosam”.

De Paraty se subia a serra pela imemorial trilha dos índios guaianás transformada pelos colonizadores portugueses em caminho para as minas. Foi o apogeu econômico: segundo principal porto na colônia, onde chegavam as especiarias e escravos para o interior do continente, e de onde partiam ouro e outras pedras preciosas em barcos até o Rio de Janeiro — cidade onde aportavam as grandes naus de travessia do Atlântico. E não nos esqueçamos que a cidade já tinha uma outra vocação imortalizada pela voz de Carmen Miranda: “Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí / Em vez de tomar chá com torradas ele bebeu paraty”. Os alambiques aos pés da Serra do Mar produziam uma cachaça que, de tão boa, tornou-se sinônimo da bebida.

A cidade comercial e portuária dos séculos 18 e começo do 19 era composta por casas singelas e funcionais, com armazéns à frente e diminutas moradias por trás. Como as construções eram geminadas, os quarteirões convertiam-se em civis fortalezas. Porém, somente em Paraty se encontrarão esquinas pintadas com faixas repletas de desenhos ornamentais: fachadas revestidas com símbolos da maçonaria para sinalizar a viajantes da mesma irmandade que naquela casa encontrariam guarida.

Isso demonstra a antiguidade de algo intrínseco ao paratiense, como o historiador Diuner Mello elucida: “Paraty é aberta para as novidades que vem pelo mar. Não há conflito entre o morador e quem vem de fora. O paratiense é receptivo”.

Com a decadência do caminho para as minas (ao fim, usado para o café), a cidade ficou isolada por quase um século. Tornou-se refúgio de intelectuais artistas como Paulo Autran, Maria della Costa e Djanira que agregaram novas características à sociedade caiçara. Enquanto a ida para a vizinha Angra dos Reis se manteve exclusivamente por embarcações, Paraty permanecia imersa em sua pacatez e certo ostracismo. Foi a abertura da Rio-Santos, na década de 1970, que reconectou a cidade com o país: trazendo consigo benefícios e malefícios próprios às noções de progresso do século 20. Por um lado, Paraty encontrou sua vocação turística, por outro, sua população aumentou consideravelmente e as casas do antigo centro valorizaram-se, fazendo com que paratienses vendessem seus velhos endereços a veranistas e donos de pousadas.

É após esse período que a Flip adentra a narrativa. Desde sua criação em 2003, o evento foi bem relatado em outros ensaios e matérias enquanto principal palco no Brasil de encontros sobre literatura. Cabe aqui analisá-la por uma dimensão pouco reconhecida: a Flip enquanto projeto urbano.

No Brasil, as experiências urbanísticas defrontam-se com fragilidades estatais e o obstáculo da política sob o ciclo eleitoral de quatro anos. Planos para cidades demandam discussões para elaboração e períodos de execução inevitavelmente longos. Em Paraty não é diferente.

A cidade carecia de instrumentos que conciliassem o corrente crescimento urbano, o desenvolvimento econômico e a preservação de seu precioso patrimônio arquitetônico e natural.

E assim a Flip emerge como hipótese de transformação urbana através do efêmero. Como atenta Mauro Munhoz, diretor geral da Associação Casa Azul, é a ideia heideggeriana de construir enquanto se habita. Rompe-se também com o senso comum acerca do urbanismo enquanto obra transformadora fáustica. A Flip é um projeto urbano cuidadoso com a tessitura física e social de uma cidade pequena e antiga envolta a um bioma diverso porém frágil. Uma transformação urbana simultaneamente delicada e potente ao responder à urgência própria aos dias atuais. No fundo, a Flip é um respeitoso esforço de atualização de Paraty.

Na segunda edição, o ato de implantar a Tenda dos Autores na margem esquerda do Perequê-Açu (isto é, o lado oposto ao do Centro Histórico) acaba por fazer do eixo fluvial um protagonista na experiência urbana.

A centenária relação entre o paratiense e a água é reafirmada na Regata da Flipinha, numa parceria com o Instituto Náutico de Paraty (especialmente na figura de Gibrail Remeck Júnior). Envolvendo jovens navegadores locais, a Flip passa a contemplar o modo de usar o território marinho como parte de seu projeto de cidade. Os Pés de Livro são concomitantemente ação educativa, intervenção artística e mobiliário urbano: as árvores da Praça da Matriz repletas de publicações infantis penduradas para os primeiros contatos de crianças com o universo literário.

Aliás, a revitalização da Praça da Matriz — “a infraestrutura onde acontece a experiência de habitar o espaço público ativado pela literatura”, como nota Munhoz — é um caso único de obra pública feita por uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), com captação de recursos pela Lei Rouanet. Inspirada no Passeio Público do Rio de Janeiro, essa praça-jardim foi concebida em 1922 por Samuel Costa, então presidente da Câmara Municipal. Ao longo das décadas, o piso original de concreto tinha sido substituído por pedras. O projeto feito pela Casa Azul retomou a superfície lisa, um contraponto em meio ao inconstante calçamento da cidade.

No presente século, duas iniciativas em processo vêm a respaldar o reconhecimento nacional e internacional do valor da cidade caiçara. Ambas são alicerces para políticas de preservação e perpetuação das manifestações culturais locais a longo prazo. Como conta Amaury Barbosa, do Instituto Histórico e Artístico de Paraty (IHAP), já se somam quase vinte anos de elaborações e revisões do dossiê de candidatura de Paraty para Patrimônio Mundial da Humanidade, a qual veio a ser aceita em 2018. Por sua vez, na década passada, o Ministério do Turismo elegeu Paraty como destino referência em turismo cultural no Brasil. Na esteira disso, a Casa Azul foi designada a capitanear a elaboração do Plano Mar de Cultura, com a consultoria metodológica de Josep Thias. Este masterplan orientava as atividades turísticas, fundamentando-se na correspondência entre produção cultural e produção de território. Como atesta o compositor Luís Perequê, fundador do Silo Cultural José Kleber: “O Plano Mar de Cultura é produto da convivência. Uma comunidade que não convive, não produz cultura. Só vende o que tem”. E, como alerta, prossegue: “a cultura tem um tempo e o capital tem uma pressa”. Com o não prosseguimento de várias das metas do Plano Mar, é recorrente escutar paratienses mais ilustrados relatando os problemas da recente invasão do turismo de massa. Alguns empreendedores substituíram a cultura pelo entretenimento sob a lógica do quanto mais, melhor. Tal como as festas tradicionais locais, a Flip atua na resistência: um intercâmbio de conhecimento para valorizar (urbanística e economicamente) os labores autóctones e o seu patrimônio construído e natural.

Para seguir em frente, por vezes, é preciso dar um passo para o lado. Esta é a sabedoria do caminhar no pé de moleque, perfeita metáfora da história de Paraty que encontra paralelo na trajetória de escritores como Hilda Hilst, homenageada do ano pela Flip: não uma marcha contínua e determinada, mas composta de passadas que requerem molejo e jogo de cintura. A maleabilidade de quem está sempre atento ao mundo ao seu redor. Ao não se fixar, transforma-se junto com este mundo. Torna-se sempre outro. Transita desinibidamente pelos gêneros literários como pelas ruas da cidade. Na alteridade urbana e poética, encontram-se experiências autênticas.

Francesco Perrotta-Bosch é ensaísta e arquiteto.