Vertigem brasileira

Fernanda Diamant
curadora
programa principal

Antes de ler Euclides da Cunha, eu o ouvi e o vi. Tive meu primeiro contato com Os sertões nas peças vigorosas feitas pelo Teatro Oficina durante os anos 2000. Dizem que é um livro difícil. Minha impressão, no entanto, foi a de uma experiência encantatória: escutar aquele texto no palco, muitas vezes musicado, me arrebatou. Ao ler o livro, o encanto se renovou e se expandiu.

Por isso, um dos caminhos da curadoria desta edição da Flip foi o de entrelaçar as linguagens artísticas. Literatura, música e encenação surgem aqui entremeadas ou fundidas, seja na forma da canção, do slam, da performance, do cinema ou da poesia de cordel.

Euclides da Cunha é um observador rigoroso e originalíssimo, que vê o Brasil com uma acuidade única. O ensaísta Gerardo Mello Mourão contou que certa vez conheceu um chinês que lera Os sertões em mandarim e estava convencido de que se tratava de um poema cosmogônico da cultura brasileira. É provável que isso tenha ocorrido por causa da abundância de descrições geográficas e botânicas no livro. A fascinação é tamanha que se avizinha da mitologia ou da literatura fantástica.

Há algo de mítico, também, no relato da violência que define a sobre-humana revolta de Canudos. Mas a tragédia é real e foi testemunhada pelo autor, que, ao escrever o livro, reviu suas convicções e nos levou às raízes, ao fundo arcaico da opressão e da intolerância que ainda alimentam a violência social no país. O breve texto de Otavio Frias Filho de 1997, apresentado na sequência deste, discute as reverberações de Canudos no Brasil contemporâneo.

A programação da Flip 2019 foi desenhada de modo a retomar temas euclidianos e, em muitos casos, atualizá-los. Não podemos ignorar, por exemplo, sua visada preconceituosa com relação às raças. Nesta edição, reunimos convidadas e convidados num debate amplo, que oferece perspectivas novas para questões atuais e antigas, na literatura de ficção, na de não ficção, na poesia e em outras formas de arte.

Montar uma Festa como esta, compondo um espaço de múltiplas linguagens, voltado ao pensamento, à escrita, à arte, à crítica e à educação, é complexo e requer meses de produção. Agradeço a todas e a todos que trabalham e trabalharam nessa tarefa que só é possível graças a um grande esforço coletivo que se renova a cada ano.