Uma comunhão, uma convergência. Foi assim que, na década de 1960, o urbanista Lúcio Costa definiu Paraty ao dizer que ela é “a cidade onde os caminhos do mar e os caminhos da terra se encontram, melhor, se entrosam”. Paraty é a água que flui para as ruas, alagando o passeio público, embaçando fronteiras. E é essa característica de diluição de divisas que baliza toda a vida local. Nesse sentido, Paraty também não separa cultura e paisagem. Ignorar isso é ignorar a própria essência da cidade.
Durante cerca de quatro meses neste ano, Paraty fechou suas portas aos visitantes. Uma responsável resposta à pandemia de Covid-19. Nesses dias, as ruas vazias fizeram lembrar um outro tempo de isolamento, anterior ao turismo de massa, anterior à década de 1970 – antes da construção da Rio-Santos, a BR-101, que foi alardeada pelo então governo militar como um “elo de integração turística”.
Na época, a rodovia — de fato e de forma necessária — religou Paraty às grandes capitais do sudeste, Rio de Janeiro e São Paulo, mas também desconsiderou em grande parte o entrosamento tão característico da cidade. Concretamente dividiu territórios tradicionais, quilombolas, indígenas, caiçaras que, assim como os rios que fluem para dentro das ruas paratienses, precisam dessa diluição de fronteiras para continuar existindo. Em certo sentido, foi como a construção de um muro, que tornou mais difíceis as trocas socioculturais do território.
Ao contrário do traçado da Rio-Santos, cego aos matizes do território, a Flip surgiu, em 2003, com a intenção de se alimentar, mas também de nutrir, a força de Paraty. Através da literatura, das artes e de uma intervenção urbana não invasiva — capaz de ressignificar espaços públicos por meio das estruturas de diferentes temporalidades instaladas no cotidiano da cidade e nos dias da Festa —, a Flip vem buscando a comunhão entre a cidade e os visitantes, sejam eles convidados renomados ou o público interessado.
Outro aspecto da pandemia foi que, ao olhar Paraty vazia, o tempo evocado (anterior à BR-101) trouxe à memória o isolamento, mas também os encontros proporcionados pelas ruas da cidade: o artista local, Zé Kleber, em troca constante com o Cinema Novo; a pintora Djanira inspirando e sendo inspirada pelos paratienses; e o bar Valhacouto, reduto da boemia local, que reunia intelectuais, artistas e visitantes de passagem pela cidade.
Todas essas imagens — o isolamento, a rodovia, a vida cultural paratiense — deixaram claro que a 18ª edição da Flip também se fazia necessária neste complexo ano de pandemia. E que ela não poderia prescindir das quatro letras que formam seu nome: Festa Literária Internacional de Paraty. Tinha que ser uma Festa, um encontro; tinha que ser literária, com sua dimensão artística que tanto explica do mundo; tinha que ser internacional, embaralhando as fronteiras entre o local e o global; tinha que respirar Paraty.
Ao contar com a presença dos jovens cirandeiros Fernando e Marcello Alcantara, caiçaras, músicos, lutieres e pesquisadores de sua própria cultura na festa virtual este ano, a Flip está reafirmando e se nutrindo do que há de mais intrínseco em Paraty: o entrosamento descrito por Lúcio Costa. A mesa com os cirandeiros, filmada no beco do Propósito – um dos locais mais simbólicos para a cultura paratiense –, e transmitida pela primeira vez durante os dias da Flip Virtual, não é um caso isolado na programação. Ao lado dela também estão as mesas entre Elisa Pereira e Rodrigo Ciríaco, e Luz Ribeiro e Nathalia Leal, que além de gravadas na cidade, entrosaram locais e convidados de fora.
Elisa, que adotou Paraty como sua cidade, é escritora e fundadora do Fuzuê Literário, sarau que nasceu de uma oficina ministrada por Rodrigo, poeta e educador das periferias de São Paulo. Nathalia, que também escolheu Paraty para viver, é poeta e uma das organizadoras do Slam de Quinta, batalha de poesia falada que se conecta à Luz, poeta, pedagoga e primeira mulher a vencer o campeonato brasileiro de slam, o Slam BR, em 2016. Juntas, essas três mesas fornecem um retrato fiel e atual da cidade: o tradicional e o contemporâneo.
No passado, o poeta paratiense Flávio de Araújo, que trabalhava como entregador de quentinhas, quase atropelou o escritor britânico Benjamin Zephaniah, convidado da Flip. Naquele momento, decidiu se dedicar à escrita com mais afinco. Hoje, já publicou seu livro de poesia Zangareio e tem textos traduzidos em diferentes coletâneas. Uma vez que a Flip continua perseguindo a possibilidade de esbarrões (ainda que virtuais), como o de Flávio e Benjamin, outros encontros e coincidências começam a surgir naturalmente. É o caso, por exemplo, da região costeira de Buenaventura, descrita pela autora colombiana Pilar Quintana em seu livro A Cachorra, e que, em muitos aspectos, lembra Paraty.
Por fim, durante os meses de fechamento da cidade na pandemia, as ruas completamente vazias também trouxeram à memória um tempo em que os moradores do centro histórico abriam a porta de casa para conversar e ver o mundo passar nos fins de tarde. Essa cena, contudo, não se repetiu. Não por causa da pandemia, mas por causa da lógica econômica e social que mudou a forma de uso do casario de Paraty: antes moradia, agora comércio.
De certa forma, a pandemia fez olhar para dentro, e foi fácil constatar que algo se perdeu nesse caminho que teve início lá atrás, com a construção da BR-101. Por outro lado, é possível ver outras urbanidades se formando em Paraty para além do centro histórico e que são tão bem retratadas, por exemplo, pelos slams organizados por jovens, que acontecem na rodoviária. Por isso, a pandemia também fez ver que, sim, há uma dimensão humana que existe nas coisas, no encontro entre a água e as ruas, que vem se esgarçando. Mas a arte e a literatura continuam aqui para alimentar essa dimensão.
Mauro Munhoz